quarta-feira, março 30, 2005

Capítulo V

CONCITA – A Primeira Cicatriz

Eu tinha apenas treze anos de idade. Tudo conspirava para que a rotina simples de um adolescente simples permanecesse inalterada, modorrenta, sem grandes expectativas.

A vida em Pentecoste era simples, cidadezinha atrasada do interior cearense, sem divertimentos, sem muito que fazer. Nossa rotina se limitava às aulas no Ginásio e Escola Normal João XXIII, da CNEC, no período matinal, à tarde, após o indefectível “dever de casa” algumas voltas pela cidade, e as brincadeiras com o os colegas, jogos de futebol num campinho de terra batida, pião, papagaio e a maior pedida: assistir a jogos regionais no Estádio Municipal entre o time da cidade e times das cidades vizinhas pelo Campeonato Intermunicipal de Futebol. O açude Pereira de Miranda era a nossa praia, aos sábados e domingos o grande ponto de lazer da cidade, onde os habitantes dos lugarejos vizinhos e o pessoal da cidade se juntavam em alegres piqueniques, onde rolava a paquera, a bebida fartamente consumida à beira do açude, que contribuía para alguns acidentes de vez em quando, fruto da imprudência de uns e outros que se aventuravam, bêbados, a nadar nas águas profundas.

A cidade não tinha cinema regular. Havia uma sala de cinema improvisada onde um abnegado cinéfilo trazia de Fortaleza e sempre apresentava nos fins de semanas os títulos que nos deleitavam, os filmes de Tarzan, But Masterson, e os seriados Os Perigos de Nyoka, A Deusa de Joba e Rin-Tin-Tim, além dos clássicos americanos, as antigas películas de Chaplin, e os títulos que atuavam as deusas Rita Hayworth, Ava Gardner, Gina Lollobrigida e Brigitte Bardot, claro, que tudo em preto e branco.

E foi aí que aconteceu o inesperado, fato que ia quebrar em muito a rotina monótona dos meus dias. Num fim de tarde no início do mês de outubro, ao retornar de um “racha” (como nós chamávamos nosso joguinho de bola), num terreno baldio próximo a minha casa dois enormes caminhões FNM desembarcavam a tralha de um circo que viera de Sobral e se destinava a Fortaleza, e resolvera fazer uma escala de experiência em Pentecoste. Outros caminhões e veículos menores vieram, dois dias depois, lépidos e experientes trabalhadores davam os últimos retoques nas instalações do “imponente e majestoso Grán Circo de Colômbia de los hermanos Hernández”, como eles apregoavam pelos alto-falantes devidamente instalados em um veículo que rodava toda a cidade e distritos vizinhos a cata de espectadores para as suas sessões noturnas, à frente o chamariz da noite, às vezes animais amestrados, os macacos e elefantes inteligentes, palhaços com suas tiradas jocosas, bem como outras tão características do gênero. Era um circo grande, como jamais eu vira antes, a lona multicolorida, azul, amarela e vermelha, as cores da Colômbia, e no topo, altaneira, tremulava a Bandeira Nacional de Colômbia, para deixar bem claro o orgulho que eles sentiam do seu país.

A tentação era grande. A chamada para o espetáculo já era em si uma atração. Uma horda de garotos esquálidos e maltrapilhos seguia num séquito hilariante o carro em sua marcha lenta pelas ruas acanhadas da cidade.

À noite, o circo féericamente iluminado prometia o grandioso espetáculo de estréia. Depois de muita chantagem emocional, choro e persuasão, conseguimos, eu e o meu irmão mais velho, convencer o nosso pai que pelos menos a estréia ele tinha que nos proporcionar.

Eram tempos difíceis. O Brasil era governado interinamente por uma Junta Militar devido a doença súbita que vitimou o Marechal Costa e Silva, então presidente, que substituíra o Marechal Castelo Branco. Meu pai perdera recentemente o seu emprego no DNOCS, onde era ao tesoureiro da distribuidora local de energia elétrica, vinculada à CHESF mas administrada regionalmente pelo DNOCS. Meu pai era totalmente apolítico, mas como era brincalhão, às vezes, fato que era comum entre amigos, rolava as piadas políticas, a maior parte delas se referindo a capacidade intelectual dos militares. O fato é que algum quinta-coluna ou dedo-duro o denunciou. Sem nenhuma explicação ele foi posto em disponibilidade, numa tradução bem cruel, foi pra casa ganhando cinqüenta por cento do seu salário e uma vaga promessa de ser colocado novamente em uma outra função pública, em algum outro local. Mera promessa sem nenhuma perspectiva palpável. Meses depois, após uma carta desesperada de minha madrasta ao então Ministro do Trabalho Coronel Jarbas Passarinho, ele foi reintegrado ao Serviço Público, sem ressarcimento dos danos materiais e psicológicos sofridos por nós todos. Fato corriqueiro em regimes de exceção.

Assim, o dinheiro dos ingressos, chorado,veio como uma benção. Para culminar nossa alegria, a surpresa, ele comprou ingresso para a família toda e lá estávamos nós, transbordando de alegria nas apinhadas arquibancadas de madeira do circo.

Os Hermanos Hernandez eram realmente geniais. A troupe compunha-se de dois irmãos e suas respectivas esposas e filhos, primos e sobrinhos que compunham o núcleo central e gerenciador dos espetáculos. Os demais eram brasileiros, artistas mambembes amealhados nas diversas cidades brasileiras, o que eu dava uma característica bem cospomolita ao elenco. Foi um show diversificado, palhaços engraçados, animais amestrados, acrobatas que desafiavam a lei da gravidade saltando nas alturas de um lado para o outro num jogo enloquecedor que prendiam a nossa respiração (parcamente amparados por uma tênue rede de proteção a poucos metros do chão). Tinha o famoso Globo da Morte onde dois motoqueiros em alta velocidade giravam dentro de um globo num barulho ensurdecedor, suas manobras sincronizadas nos deixavam sobressaltadas na expectativa de um erro fatal. Para o grand - finale uma peça teatral era dramatizada no picadeiro, acho que a Rede Globo inspirou-se na criação de suas novelas através de espetáculos semelhantes. A peça onde participava toda a família Hernandez e outros artistas brasileiros era o chamariz para o espetáculo da noite seguinte. Boa parte da audiência indubitavelmente voltaria no dia seguinte para acompanhar o capítulo seguinte do espetáculo tragicômico,tão bem apresentado na noite anterior, com o inevitável suspense final,encerrado ao som da fanfarra, para o gáudio da platéia.


No outro dia no Ginásio, El Gran Circo de Colômbia era o assunto de dez entre dez colegas. Os comentários e as perspectivas de novas atrações era a empolgação de todos. À noite, logo após o jantar, tão logo nossos afazeres foram executados, dirigi-me para o Circo, já resignado de que uma ou outra sessão que porventura viesse a assistir,seria por acaso, fruto de um azar do destino, já que como dissera antes, o parco dinheiro do meu pai se destinava apenas aos gastos essenciais de manutenção da família.

Foi aí que aconteceu algo que marcou profundamente o meu destino. Inconsolado, vendo o ruge-ruge de pessoas entrando, os ambulantes do lado de fora, como sempre, vendendo seus tradicionais “espetinhos”, roletes de cana e outras guloseimas. Encostado na grade de proteção, próximo à cerca, aproximou-se de mim uma garota. Olhou para o lado de fora, e chegando mais perto ainda de mim, sorriu e disse:

_ ¡Holla! ¿ Como está usted? ¿Como te llhamas?

Meu coração bateu acelerado. A garota aparentava mais ou menos a minha idade e altura. Era muito alva, olhos nigérrimos e rasgados, típicos dos índios de sua terra,os cabelos extremamente negros e lisos, à altura da cintura.O sorriso muito branco, dentes perfeitos; longilínea, uma sílfide deslumbrante, com o talhe perfeito esculpido na dura disciplina do treinamento de suas danças e acrobacias ao longo de suas ininterruptas jornadas ao redor do mundo. Exalava um perfume embriagador. Já estava devidamente preparada para a sua estréia na nova cidade.

Balbuciei qualquer coisa em resposta sua pergunta. Ah! Que doce musicalidade tem o idioma de Cervantes, principalmente pronunciado pela boca de uma deusa!

Não me lembro de até então ter sido tão violentamente tocado pela presença de uma mulher. Nem mesmo as coleguinhas mais bonitas de minha escola me fizeram despertar o turbilhão de sentimentos e emoções inesperadas que de repente tomou conta de meu corpo naquele instante. Apoiado na grade, tive sorte dela não ter notado o quão nervoso eu ficara com sua inesperada presença.

- Meu nome é Orley!

O espanhol me era totalmente estranho, já tivera tido minhas primeiros lições de Inglês com minha professora do Ginásio, Dona Paulline, que era americana do Alabama, voluntária do Peace Corps, que viera para o Brasil em socorro aos desabrigados do arrombamento do Açude de Orós, em 1960. Por aqui ela ficou apaixonada pelo Brasil e pela nossa miséria. Acabou casando com um cearense e fincando raiz em Pentecoste.

Tentei entabular uma conversa aceitável. Era fácil e conseguimos manter um diálogo inteligível, como é providencial a proximidade de nossos idiomas. Seu sorriso aberto e franco, com um sonoro gritinho de decepção ao tentar por duas ou três vezes pronunciar sem sucesso o meu nome: Orléiii.

Seu nome era Concita. Consegui com mais sucesso pronunciar Conchita (com o h aspirado como o tchê dos gaúchos). O Sr. Hernández, seu pai, um sujeito alto, com um vasto bigode negro, cabeleira grande e igualmente escura e lisa como os cabelos da minha nova deusa, aproximou-se de nós e num tom vigoroso, gritou para que ela se apressasse, o espetáculo já ia começar. Após um rápido ! Hasta luego! Ela saiu correndo lépida e fagueira em direção ao trailler que mais tarde eu vim a saber ser sua morada.

O Sr. José Hernandez, pai de Concita, era um sujeito disciplinado e rigoroso. Natural de Bucaramanga, região norte da Colômbia, imigrara muito jovem para a Espanha na procura de melhores condições. Sua região além de muito pobre, tinha um clima inóspito, o que obrigava cedo seus jovens a desertarem em direção ao desconhecido.

Na Espanha, Hernández freqüentou uma afamada Escuela de Artes Circenses, onde conheceu uma bela cigana húngara, que também lá estudava. Apaixonaram-se, e logo após a formatura viajaram para a Colômbia cheios de sonhos e planos de uma carreira de aventuras ao redor do mundo aplicando os conhecimentos adquiridos na famosa Escola.

A senhora Hernandez, que se apresentava como Margherita, talvez um pseudônimo nacionalizado para o espanhol, era uma senhora muito bela. Trajava-se com roupas coloridas típicas da Colômbia. Era extremamente branca, olhos azuis, nariz empinado, uma legítima caucasiana. Eis ai a razão da beleza exótica de Concita, sagrada mistura, o produto final de um índio colombiano e uma gitana dos Balcãs.

A paixão por Concita ia aumentando dia a dia no meu imaginário. Por vezes fui chamado à atenção na aula de Português, onde o Padre Antônio Moreira Filho , nosso Diretor e vigário local ministrava suas aulas de alto nível, onde deitava toda a sua sapiência em grego e latim, para nos informar a origem das palavras e o significado das estruturas sintáticas do Português.

_ Lacerdinha!!!!! Onde você está???? Dormindo na sala!!!!!!

Ele me chamava de Lacerdinha, que é um mosquito que infestava as algarobas e benjamins plantadas nos canteiros da cidade. Eu era o menor e mais novo aluno da sala, e era o preferido dele pela minha aplicação nas diversas matérias do Ginásio. No interior é comum os filhos ajudarem os pais na lavoura, fato que tirava as crianças das salas de aula muito cedo. Minha sala era composta na grande maioria de moças e rapazes, acho que eu era o único que estava na faixa etária adequada para o ano escolar. Ele chegou a perguntar uma vez após a aula se estava acontecendo algum problema em minha casa.

A minha visita noturna ao circo passou a ser uma obsessão. Concita quase sempre aparecia próximo à entrada. Certo dia ela se aproximou e perguntou se eu não ia entrar. Disse-lhe que não tinha dinheiro suficiente para assistir as sessões diárias.

- Espere un ratito!!!

Um minuto depois ela apareceu acenando lá na esquina da cerca me chamando. Corri apressado e ela me mandou segui-la. Fomos até o fundo do circo onde ficavam instalados os traillers que serviam de casa para a troupe. Com a conivência de um empregado, ela abriu uma portinhola e me fez entrar. E lá estava eu acompanhando a Concita rumo à entrada principal para assistir ao espetáculo.

E assim começou a nossa estória. Dia após dia eu assistia às sessões deslumbrado com a performance de minha amada no picadeiro. Ela representava diversos papéis, dançava com desenvoltura a ginástica artística com fitas, bolas e bambolê. Seu pai contracenava às vezes com ela especialmente em uma apresentação em que ela entrava no bambolê e ficava sendo arremessada de uma ponta a outra, a roda girava no solo, da mão do seu pai para outro parente seu na outra ponta do picadeiro. Tinha também as apresentações do trapézio onde aquela minúscula criatura sorridente voava de uma ponta a outra com precisão cirúrgica, até encontrar as mãos poderosas que lha acolhiam após o seu vôo mágico. Era contorcionista, parecia feita de borracha em seus movimentos no solo.

No final de cada espetáculo lá estava Concita novamente no palco representando seu papel de atriz mirim na peça que encerrava sessão do dia, falava um portunhol forçado para que o povo não perdesse nada dos diálogos apresentados.

Dia a dia eu me consumia de paixão e admiração. Concita era extremamente loquaz, falava rápido como se tivesse pressa de dizer tudo ao mesmo tempo, como se já adivinhasse a trágica despedida que estava próximo a chegar, a nossa separação. Falava dos lugares onde já havia passado, do norte da Colômbia, terra do seu pai, subira para o Panamá, Costa Rica, El Savador, Honduras e México. Voltaram para América do Sul onde fizeram toda a Costa do Pacífico. Narrava com perfeição os países visitados, Chile, Uruguai, Paraguai, Argentina e Brasil, como uma bandeirante exploradora devorara cada rincão de nosso solo, as pequenas e grandes cidades do interior do Brasil. Essa desenvoltura de falar e o conhecimento de terras longínquas davam-lhe um ar de graça e sabedoria.

Comecei a notar que Concita de certa forma se afeiçoara a mim. Fui aos poucos criando coragem a ponto de demonstrar que nutria por ela muito mais que admiração e amizade: eu estava irremediavelmente apaixonado.

Concita sorria maliciosamente, eu, um ingênuo e tímido garoto do sertão, ela, formada na escola da vida, viajada e com um ar de mulher fatal com seu narizinho empinado: o nariz ariano de Dona Margherita.

Concita correspondeu aos meus tímidos avanços. Certa noite sob o pretexto de mostrar o lindo vestido que sua mãe lhe aprontara para a noite de gala, o último espetáculo, fez com que eu adentrasse o trailler onde ela morava. Era uma casinha confortável, pequena, mas bem mobiliada, toda providencial, com um conforto aceitável para quem leva a vida errante de saltimbanco.

Estávamos sós. Ela entrou em um compartimento com um vestido azul na mão e um brilho diferente nos olhos. Ao aproximar-se, como numa combinação tramada pelos deuses, segurou em minhas duas mãos e nos beijamos. Uma descarga elétrica invadiu meu corpo, isso hoje em dia se chama descarga de adrenalina.

Foi um beijo inexperiente. Apaixonado, mas sem lascívia e que iluminou profundamente a minha alma do começo ao fim. Ficamos mudo, um silêncio quase constrangedor, as batidas do meu coração perturbavam o nosso pacto silencioso.

Ouvi barulhos de passos aproximando, era a Dona Margherita que falando rapidamente numa língua meio confusa tirou dela a resposta: eu era um amigo local que queria conhecer o trailler e ela me mostrava seu lindo vestido da despedida.

À noite não consegui dormir. Eu amava profundamente e fora correspondido. Às vezes me pergunto se o prazer e a felicidade de amar compensam o sofrimento que invariavelmente acarreta. Será que o poeta tem mesmo razão quando diz que amor rima com dor, não por capricho da linguagem, mas pela sua própria essência, pela inexorável condição em que ambos estão atrelados.

Nossos encontros foram acontecendo cada vez mais amiúde, na cumplicidade da escuridão das tralhas. Era de fato um namoro, nossos beijos ficavam cada vez mais lascivos. Eu me orgulhava de ter sua atenção. Era um sentimento tão importante para guardar sozinho, que já necessitava compartilhar com outras pessoas. Contei tudo o que acontecia ao Odilardo, meu irmão mais velho, ao Nazareno e ao Raimundo Henrique Martins, que era conhecido como Tadeu, meus colegas de sala, todos de extrema confiança e uns quatro ou cinco anos mais velho que eu.

Todos foram ao circo com a atenção voltada para o meu alvo, para ver o desempenho de minha namorada e confesso que até hoje me sinto grato pelo quanto eles torceram por mim e elogiavam a beleza, o charme e a sabedoria de minha amada. Eram mesmos meus amigos.

Na semana seguinte o apresentador da abertura do espetáculo começou a avisar que “esta seria a última semana do inigualável Grán Circo de Colômbia nesta cidade”. Era um artifício muito comum entre os circos anunciar a última semana para apressar os possíveis espectadores a se decidirem logo a comprar os seus ingressos. Eles conhecem a medida exata da exaustão do público.

A cada anúncio dessa natureza meu coração doía. A perspectiva iminente de perder Concita atormentava meu pobre coração ainda virgem das emoções desencontradas que o amor nos proporciona. Eu sofria, sozinho, desesperadamente desamparado.

O anuncio de que certo dia seria a última apresentação não se confirmava. Coma a um doente na UTI era me dado uns dias de sobrevida. Mas, eis que numa certa noite após o espetáculo, na calada da noite, foi efetuado o desmonte do circo. Ao acordar, após o café da manha, livros embaixo do braço, a caminho do Ginásio, foi com o coração apertado que presenciei a faina dos trabalhadores , suados, sem camisas, retirando as últimas estacas da cerca de proteção.Cada estaca arrancada do solo era como se um espírito invisível a cravasse no meu peito. Fugi dali, inconsolável.


Nessa manhã mais uma vez fui admoestado pelo Padre Moreira. A perda de Concita, mesmo previsível, mexia demais com os meus sentimentos, o mais dorido era a certeza quase absoluta que ia perdê-la para sempre.

Mas eles não seguiram seu destino nesse mesmo dia. Alguns compromissos legais do Sr. José Hernández o obrigaram a ficar mais um dia e uma noite na cidade, coisas relacionadas com taxas de administração junto à Prefeitura, pagamentos de água e energia, pagamentos a fornecedores, coisas do gênero.

À noite chorei nos braços de Concita. Foi uma despedida dolorosa. Perdia meu primeiro amor de uma forma absurda e covarde.O mesmo circo que tão alegremente me trouxera, me arrancava de maneira grotesca, quase incompreensível. Era por demais pequeno para evitar a inexorabilidade trágica do destino. Rascunhei em um pedaço de papel jornal meu nome completo e endereço e arranquei de Concita a promessa que ela me escreveria tão logo chegasse ao seu primeiro destino.

À noite no escuro do meu quarto derramei lágrimas de sofrimento. Meu lençol ficou úmido e salgado. Minha madrasta ouviu meus soluços contidos e indagou o que estava acontecendo. Como não tinha coragem de me abrir com ela disse-lhe que tinha brigado com meu irmão mais velho e ele me batera, fato muito corriqueiro entre nós, ele já estava dormindo na sala ao lado, e nada entendeu quando no dia seguinte levou dois “cascudos” para que acabássemos com essas brigas eternas.

Como eu desejei naquele momento ter uma mãe para me aninhar em seus braços e contá-la toda a minha desgraça. A frieza do nosso relacionamento e a minha timidez de expor meus sentimentos não permitiam isso.

No dia seguinte acordei bem mais cedo que de costume, dei uma espiada pela janela e vi que tudo estava praticamente consumado. O comboio já estava em formação. Saí como um autômato em direção aos carros.

Caía uma chuva fina. Na frente do comboio o caminhão azul FNM carregando na boléia o casal Hernández e minha doce Concita. Ela esticou a cabeça para fora, sua longa cabeleira escura pendendo pra fora da boléia, o sorriso branco e perfeito dando adeus com o movimente singelo de suas lindas mãozinhas.

O comboio deu a partida. A razão me impedia de seguir correndo atrás das viaturas, mas meu coração ganhou ali uma cicatriz profunda que custou a desaparecer, uma dor turbulenta, irreparável. Duas lágrimas teimosas escorreram em meu rosto confundindo com os pingos da chuva. Aqueles momentos finais continuam até hoje, indeléveis, em minha memória.

Concita foi-se de minha vida, tão rápido quanto a sua aparição, deixara uma marca inesquecível no coração de um garoto sofredor, que teve a infelicidade de se apaixonar por uma artista mambembe, acostumada a viajar por destinos desconhecidos e amar sem paixão, sem se preocupar com as feridas causadas nos corações alheios.