sábado, setembro 07, 2002

AMORES (de um dos livros do grande Darcy Ribeiro)
As mulheres sempre me interessaram soberanamente. Desde que me lembro de mim, criança ainda, me vejo embolado nelas, carente, pedindo carinho. Encantado, querendo encantar. Quis ter muitissimas, se conto as duas ou três que sempre tive em mente como senhora dos meus desejos. Alcancei as graças de umas pouquíssimas. Uma pena.

Foram elas, são elas o sal de minha vida, o gosto e o gozo do meu viver. Marinheiro neste mundo, amor é vento que sopra em minhas velas nas travessias. Amando, navego por mares calmos e bravios, me sentindo ser e viver. Não posso é viver sem amor, desamado, na pasmaceira das calmarias, parado, bradando de ver o mar da vida marulhar à toa.

Um olhar trocado, instantâneo, me acende todo em expectativas. Antigamente, jovem, tímido demais, ficava nisto, esperando outra piscadela, com medo de que me fugisse, nem olhares me desse mais. Maduro, fiquei meio ousado, impaciente, ao primeiro sinal de assentimento provável me precipito. Assusto, assim, muitas vezes, amores levemente prometidos, nem isso, apenas insinuados, que perco porque os quero ter ali e agora, pressuroso.

Aos olhos das moças de hoje, minhas netas, sou um velho. Sou mesmo e isso me dói muito demais. Quisera o impossível, de ser confundido com essa rapaziada de agora, felizarda. A sedução intelectual às vezes remedeia um pouco. Raramente. Quando ocorre um desses encantamentos, são elas que avançam. Um beijo facial inocente, que passa raspante, lambido, pela boca, dá sinal de que ela, talvez esteja a fim. Se acontece, nos precipitamos no canal vertiginoso. Para amar é que eu quisera viver mais e mais. Viver jovem, tesudo, seduzindo, seduzido...quem me dera....

O amor é a mais funda, mais sentida, mais gozosa e mais sofrida das vivências humanas, e suspeito muito que o seja também para todo o ser vivente. Cada pessoa devia amar todos os amores de que fosse capaz. Sucessivamente em amores apaixonados , cada um deles vividos e fruidos como se fosse eterno. Pode-se amar até simultaneamente amores apaixonados, mas é um perigo, faça isso não que arrebenta coração.

Haverá quem diga, imprudente, que não falo de amor, mas de carnalidade. É certo. Amor, uma doida já me disse: é carne feito espírito. Todo amor, amor mesmo de homem à mulher e vice-versa, de homem à homem, de mulher à mulher, tem sua base carnal ou é um mero encantamento. Há uns pobres amores chamados paternais, filiais, fraternais, amigais – embora se diga que são contaminados, eles também, de carnalidade – mas esse é outro departamento.

Amor sem desejo e confluência é fervor, bem querer ou que se queira. Mas amor não é. Somos seres irremediavelmente solitários. Ao nascer, rompemos, sangrando, nossa mãe, o vínculo carnal com ela que se recupera em nostalgia, mamando, sonhando. A única comunicação possível, desde então, é a carnal do amor.. Nele é que, comungando nossos corpos engolfados um no outro, rompemos por instantes a solidão para, sendo dois, nos fazermos um naquele sagrado instante.
O só desejo de confluir, ainda que realizado, porque inalcançável, é ainda amor. A ausência de desejo é, já, desamor. Às vezes a um ser muito querido, mas que é um tão só um amor amado. Há, concordo, carnalidade sem amor, são prevaricações. Gratificantes por vezes, até demais. Tanto que alguma gente, homens, sobretudo, se vicia nelas, só querendo fornicar e variar, são bichos-gente, incapazes de amar.

Na sucessão das estações da vida, o tempo, fera, nos vai comendo, os anos infantis da idade dos dentes de leite mal capazes de morder, quando todo amor é vão e temporão. Depois, os juvenis, tão aflitos, excitante, frente ao mundo suculento, frutuoso, oferecido ao desejo sem coragem de colher o seu, deixando passar, enquanto o tempo nos esgota aquela idade. Mais tarde, apenas maduro, maduro já, ou madurão, nos chega pleno em atrações de meses, anos, todas eternas enquanto duram, disse ele. Depois, ora depois, vem a era de quem era. Triste era.

Eu, pobre de mim, estive sempre tão ocupado em planos e fazimentos, com a vida me jogando daqui prali , desatento de mim mesmo, que até do amor me vi abstente, quase sempre meio ausente. E o tempo a me acabar, inclemente. Agora, me espanto de ver aquele menino antigo, aquele rapaz, tímido, aquele homem feito, posto na idade provecta, respeitável. Só agora, tão tardiamente, sinto a dor dos buracos de mim, em que vivi ausente, desamado, enquanto o tempo me comia os idos. Inapelavelmente.

Há o amor dessa idade, queremos que haja, platônico decerto, quer dizer, sem dentes, impotente. Conheço muita gente que me falou dela, muito antes que eu a alcançasse. Todos, como eu agora, estavam acesos, querendo amar , sofrendo não poder, mas querendo, insaciáveis. O amor é um assunto preferido dos velhos que têm juízo e coragem. Muito mais que os jovens eles falam, incansavelmente, de amores imaginados, havido, ou esperados. Trêmulos já, dos anos que lhes pesam, continuam balbuciando, querendo amar.. Que força terrível a desse motor da vida que vibra em todo o ser, forçando-o a transar, multiplicar. Isto é a vida, este clamor do desejo, esta confluência sem fim, este gozo, ou a ruminação longuíssima da memória deles.

Falei uma outra vez, sinceramente, ouvido pela boca de um romance amigo. Amores dele, decerto. Veja lá: “Umas mulheres das mais mulheres desse mundo tão bem provido delas , atravessaram meu caminho, e eu, graças a Deus, o delas. Todas se imprimiram em mim... prazer e dor. Cada um ao seu modo foi o meu eterno amor naquela sua, nossa hora. Algumas ficaram em mim. Eu as terei sempre”

Que bom ter o talento de expressar tão bem o sentimento da alma humana!
Valeu Darcy! Que falta que você faz!

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